Memórias do 25 de abril de 1974
Hoje, lembrei-me de aceder ao meu
“sótão” e procurar o recanto onde
guardo as recordações mais preciosas de há muitos anos atrás. As memórias
que hoje procurei estavam escondidas há quase quarenta anos. Lembro-me de um
dia de Abril sorridente pintado de vermelho de Primavera e de verde de
esperança. ..
Loulé, 25 de abril de 1974
Foi um dia diferente de todos os outros, sim isso foi!
Foi um dia diferente de todos os outros, sim isso foi!
O meu pai era a pessoa que se
levantava mais cedo lá em casa. Às seis da manhã, quer fosse dia da semana,
quer fosse domingo ou feriado, estava a pé e às sete horas em ponto saía de
casa. Às nove horas, quando o dia normal de trabalho das
pessoas começava, já o meu pai contava com
duas horas completas de trabalho. Naquele dia, dia de escola, por
estranho que pareça, o meu pai estava em casa, o que significa que saíra para o
trabalho e, entretanto, voltara. O saco grande de pano onde guardava o pão que
fora buscar à padaria estava pousado em cima de uma cadeira da cozinha e ele
estava de pé, escutando atentamente a telefonia, sem dar conta da nossa chegada. Naquele dia o meu pai não nos atirou ao ar como costumava fazer sempre que chegava a casa. Alguma coisa estranha se passava naquele dia! O que seria?! Só a minha avó
parecia seguir a rotina normal e, sem ligar importância à
telefonia, insistia para que tomássemos o pequeno-almoço e nos despachássemos
para a escola.
Eu tinha oito anos e andava na 3ª classe.
Na escola, naquele dia, a professora, a D. Helena, estava nervosa e isso percebia-me pela forma como falava e como deambulava distraidamente de um lado para o outro na sala de aula. Por que é que não fechava a porta da sala como era habitual? Não sabíamos porquê, mas também não perguntávamos. Havia muita coisa que nós naquele tempo não perguntávamos. Os adultos tomavam decisões e nós obedecíamos sem refilar e sem pestanejar. Sabíamos que em algumas salas de aula existia uma régua de madeira que as professoras utilizavam para castigar os meninos e meninas. Na gaveta da D. Helena existiria provavelmente uma, mas naquele ano e com aquele grupo de meninas não me lembro de ter sido utilizada.
Eu tinha oito anos e andava na 3ª classe.
Na escola, naquele dia, a professora, a D. Helena, estava nervosa e isso percebia-me pela forma como falava e como deambulava distraidamente de um lado para o outro na sala de aula. Por que é que não fechava a porta da sala como era habitual? Não sabíamos porquê, mas também não perguntávamos. Havia muita coisa que nós naquele tempo não perguntávamos. Os adultos tomavam decisões e nós obedecíamos sem refilar e sem pestanejar. Sabíamos que em algumas salas de aula existia uma régua de madeira que as professoras utilizavam para castigar os meninos e meninas. Na gaveta da D. Helena existiria provavelmente uma, mas naquele ano e com aquele grupo de meninas não me lembro de ter sido utilizada.
Naquele dia de abril tínhamos a
perceção de que se estavam a passar coisas estranhas que não podíamos compreender. A professora entrava e saía da sala,
enquanto resolvíamos os problemas de aritmética; as professoras das
outras salas também entraram algumas vezes na nossa sala, ora uma, ora
outra e cochichavam baixinho com a nossa professora. A certa altura, já a manhã ia avançada, a
professora Helena foi buscar a cadeira que estava por detrás da secretária e,
encostando-a à parede dos lados esquerdo e direito do quadro, retirou as fotografias
do Presidente da República, o almirante Américo Tomás e do Presidente do
Conselho, o Dr. Marcelo Caetano que, ao lado do crucifixo, enfeitavam a parede da frente da sala. A D. Helena disse-nos, naquela manhã que
aqueles senhores que até aí consideráramos como os «chefes» de Portugal, já não governavam mais o país. Naquela altura não
compreendíamos o porquê. Política era algo de que não se falava, a ordem e a
disciplina eram indiscutíveis. O mundo e a sociedade pareciam ser para nós
perfeitos. O que se estava a passar? Não o compreendíamos então. Submissas e
obedientes como éramos, escutávamos a explicação da professora e permanecíamos
em silêncio respeitando a ordem estabelecida.
A minha turma era composta
unicamente por raparigas. A escola, edifício do Estado Novo, modelo plano
centenário, era grande e tinha muitas salas. Havia a sala das meninas da
1ª classe na ala da direita e a sala dos
meninos da 1º classe na ala da esquerda, a sala das meninas da 2º classe na ala
da direita e a sala dos meninos da 2ª classe na ala da esquerda e assim
sucessivamente. Os recreios dos meninos e das meninas também eram separados.
Naquele tempo os meninos brincavam com os meninos e as meninas com as meninas.
As brincadeiras também eram diferentes: no recreio da ala esquerda a bola e o jogo do "apanha" eram os reis; no recreio da ala da direita reinavam as danças de roda e os jogos do elástico e da corda.
Naquela tarde não tivemos aulas. Através da rádio, os locutores pediam às pessoas que permanecessem em casa e foi isso que quase todas as pessoas fizeram naquele dia e nós crianças também.
Naquela tarde não tivemos aulas. Através da rádio, os locutores pediam às pessoas que permanecessem em casa e foi isso que quase todas as pessoas fizeram naquele dia e nós crianças também.
Nos dias seguintes ouvimos
repetidamente a palavra liberdade. «Liberdade» era uma palavra bonita e começava
a surgir em muitas canções. Naquele tempo cantávamos muito e fazíamos bailes de
roda no recreio da escola. Lembro-me de depressa substituirmos o «Ai, ai minha
machadinha» e a «Linda Falua» pela canção da gaivota que voava com asas de
vento e coração de paz. Tornou-se a nossa canção preferida e cantámo-la
milhares de vezes. O slogan «O Povo Unido jamais será vencido» passou
a ser uma espécie de grito de guerra das nossas brincadeiras. (...)
Havia também um quartel general
na «casa do quintal» uma arrecadação no quintal da casa da minha avó, lugar onde o meu avô guardava as
sacas de alfarroba e amêndoa e
alguns utensílios e alfaias agrícolas. Era aí que eu, a minha irmã e as
amigas da vizinhança brincávamos durante algumas horas por dia. Foi aí que passámos o longo
Verão quente de 1974, quando o país estava em brasa com o desenrolar dos
acontecimentos políticos da época (a nacionalização das empresas e a reforma agrária). Naquele tempo os verões eram longos e as férias prolongavam-se até ao mês de Outubro. Indiferentes aos assuntos da política e aos problemas do país que eram assuntos dos adultos, não
deixávamos, contudo, de transportar os símbolos, os nomes e as palavras de ordem
da época para as nossas brincadeiras. Na parede em frente à porta da casa do
quintal, nosso quartel general ou nossa sede, figurava o símbolo do partido comunista
português, uma foice e um martelo, dois objetos que o meu avô, depois de muitas
advertências, nos deixara pendurar na parede. Não compreendíamos o que
significava ser comunista, sabíamos apenas que aquele era um sinal dos tempos,
talvez um símbolo da liberdade, da justiça ou da igualdade que se apregoava. A
minha tia mais nova que era professora primária achava graça às nossas
brincadeiras e ria-se imenso, por isso, julgávamo-la comunista como nós. Longe
de ideologias e ideias feitas, éramos apenas crianças e amávamos a palavra
liberdade. Os adultos, cansados de opressão e repressão, deixavam-nos viver em
pleno essa liberdade através das nossas brincadeiras. Montados nas sacas de serrapilheira
cheias de amêndoas, empilhadas junto a uma das paredes da casa do quintal,
éramos cowboys (ainda víamos muitos filmes de cowboys naquele tempo) e
corríamos velozmente pelas pradarias e campinas de um novo mundo que os adultos
nos diziam estar a ser construído. A brincar éramos livres!
A vossa professora (Alice Bernardo)
http://www.youtube.com/watch?v=SlbFBdiNw24&feature=related
(canção da gaivota que voava com asas de vento e coração de paz)
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